4 de setembro de 2008

Havemos de ser outros amanhã...*

"Pelas mãos e pelos olhos eu juro"


são as mãos que me trazem o amor dos homens

e me largam na fronteira de todos os segredos

que repousaram em mim como no breve espaço

de uma lua fugaz


também as tuas mãos haviam de chegar um dia assim

ou pelo menos foi isso que eu pensei quando

o teu corpo tocou ao de leve a sombra das águas

que tinham corrido ao longo das noites da tua ausência


mas às vezes o destino escreve-se

com inesperados visitantes

e o nosso quarto ficou cheio de vozes mas

nenhuma nos reconhecia por dentro das suas

mais absurdas dissonâncias

e foi então que eu soube que a felicidade

era apenas um complemento

muito circunstancial e remoto de lugar onde

em que nenhum passado que nos pertencesse

faria qualquer sentido


apesar de tudo os meus dedos

ainda procuram reter o sôfrego sabor das horas que faltam

para o prometido regresso

das palavras tecidas de fresco entre a penumbra

das nossas pernas


mas houve sempre desígnios imutáveis

eclipes ravinas ou a ácida saliva das marés

ou simplesmente a ferida de quem vinha

em voz baixa reclamar o que lhe fora roubado


e os meus dedos acabavam por recuar

e as palavras com que em tempos

tinhas esperado por mim

cansaram-se


e são hoje nódoas rosadas no meu corpo

como se o meu corpo fosse um mapa

onde o teu corpo deslocou minúsculas bandeiras

em tempo de guerra


- Alice Vieira, in Dois corpos tombando na água -*

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