12 de maio de 2012

Cães, baleias e outras questões.


Esta Primavera ansiada, que finalmente parece estar a regressar, devolveu-me um pouco a mim mesma. A chuva e os dias cinzentos deixam-me com a já tão famosa neura de Budapeste e nem mesmo as minhas preocupações em relação à seca que se fez sentir durante tantos meses conseguiram amenizar o facto de ser uma criatura que se move a energia solar. A falta de sol e de luz coloca-me defronte das minhas próprias zonas mais sombrias, obrigando-me a várias alegorias dentro de uma caverna solitária, antes de ganhar forças para me reerguer e voltar a enfrentar a vida de cabeça levantada e coração aberto. Contudo, a passagem pela sombra faz-me sempre perceber quão longa e diversa é a escala de cinzentos, ajudando-me a perspectivar novamente todas as coisas, todos os problemas e qualquer que seja a questão.

Longe de ter a vida outra vez alinhada, se é que algum dia esteve, mesmo ainda submersa em problemas, angústias e batalhas diárias, há pequenas grandes perguntas que se vão respondendo quase a si mesmas, levando-me a acreditar na máxima que a vida se resolve sozinha, desde que nós vamos dando uma ajudinha em tudo o que estiver ao nosso alcance. Porque o que não está, a nós também não nos compete resolver e esse reconhecimento pode ser uma libertação. Não controlamos tudo, mesmo, e ainda bem.  

Uma das questões que se têm vindo a resolver, de uma forma cada vez mais clarificadora e, surpreendentemente, pacificante, prende-se com aquilo que quero fazer daqui em diante, não sendo isso sinónimo de para o resto da minha vida. Ao longo do meu crescimento sempre foi mais ao menos notório, mais ou menos consensual, mais ou menos espectável que o meu caminho, no que ao meu plano de estudos dizia respeito, seguisse pelas Letras/Humanidades, essa área tão rica e vasta, mas que, por defeito das escolhas tomadas, se revelou algo castradora e limitativa. Hoje sei, e consigo enxergá-lo de uma forma consciente e racional, não foram apenas as escolhas que me limitaram, mas sim o que eu fiz com as consequências dessas limitações. De certa forma, deixei-me castrar por uma série de frustrações, sonhos furados e expectativas goradas, repetindo insistentemente para mim mesma se não sou isto para o qual estudei, então não sou nada, nem ninguém, agarrando-me às expectativas que os outros tinham em relação a mim e ao meu futuro, numa teimosia autista e destrutiva. Se me continuo a alimentar de palavras, se a escrita é e será sempre a minha paixão primeira, se a possibilidade de contar histórias me deixará sempre com um sorriso de menina no rosto, se tudo isso faz parte de quem sou, não me define na totalidade, nem traduz tudo aquilo que trago dentro de mim. As pedras no caminho, as frustrações e as adversidades têm servido, senão para mais nada, para me ajudar a traçar novos rumos e conhecer-me um pouco melhor, sem filtros ou preconceitos. 


Hoje, sem mágoa, dor ou frustração, posso afirmar que, apesar de o Jornalismo ser a minha área de formação, não me considero jornalista, não me defino como tal e não me sinto parte da classe. Na verdade, nunca pertenci nem nunca senti falta de pertencer. Nem vontade, para ser completamente sincera. Conseguir pôr isto tudo em palavras, admitir para mim mesma e, acima de tudo, perante os outros que aquele não é e, muito provavelmente nunca será, o meu futuro, obrigou a um processo longo e penoso. Mais do que tudo, não queria decepcionar todos aqueles que tantas esperanças depositaram em mim e depois ficou-me o vazio: e agora, se não sou isto, o que sou então? Exigia-me uma definição, como se a minha vida precisasse de ficar resolvida e fechada na casa dos vinte, ninguém tem dúvidas existenciais depois dos trinta, pelo menos não no mundo perfeito onde alguns nos fazem acreditar que vivem. Sem uma profissão que me definisse, sem um emprego que me ajudasse a dar sentido a uma existência que se esperava bem sucedida, sem um trabalho certo e específico, com muitas frustrações, desvios e alguns motores gripados ao longo da estrada, o que restava nunca me parecia suficiente, digno de valor, capaz de interessar a quem quer que seja. E assim, cada bocadinho de mim ia sendo progressivamente anulado, numa espiral centrifugadora que quase me ia roubando a alma, o sorriso e o azul do olhar que um dia, alguém sábio e conhecedor de todas as nuances da vida, me garantiu vir a ajudar-me a ver o mundo como quem olha para o quadro todo, enxergando para lá daquilo que nos colocam à frente. 


Não sei em que momento do meu passado me prendi à ideia que só uma profissão e um emprego, com tudo direitinho e acertado, daqueles quase para uma vida inteira ou, pelo menos, sem me desviar muito da casa de partida, seriam o garante de uma vida plena e feliz e, mais do que tudo isso, seriam o meu B.I., a minha identidade, aquilo que me iria definir no mundo lá fora, estabelecendo metas e balizas bem demarcadas. Não sei em que momento me perdi de mim mesma. Ou talvez saiba, só me tenha custado tanto lá voltar e resgatar-me para a vida, para um sítio onde possa ser eu própria, sempre e o mais possível. Mas o processo continua a ser feito e a parte mais difícil da montanha já foi escalada. Estou agora a recuperar forças, a respirar fundo e a reunir as provisões necessárias para que, se os planetas todos se alinharem e os deuses me derem uma ajudinha, possa atingir o cume o mais breve possível. 


Ando sem dormir direito há tanto tempo que as ideias e os pensamentos fervilham dentro de mim como a água dentro de uma panela de pressão. Alguma coisa há-de sair de tudo isto, contudo. Espero que os meus projectos atinjam uma maior clareza e eu tenha a sabedoria e o engenho necessários para os pôr em marcha. Alguns já estão começados e, assim o espero, no bom caminho. Se a esperança me falha em tantos momentos, logo se renova em tantos outros. De não acreditar em nada, passei a acreditar em tudo. Na possibilidade de tudo, assim permitam as nossas capacidades, vontade e empenho. Nada me parece impossível e todo um mundo novo se abre à minha frente - e eu estou disposta a abrir-me para o mundo, pela primeira vez, desde há demasiado tempo. 


Não passei, no entanto, a ver a vida a cor-de-rosa, não encontrei nenhum livro de auto-ajuda infalível, nem acredito em tal coisa, apenas tomei a decisão de me deixar de merdas, encarar os medos de frente e, tanto quanto possível, vencê-los. Um a um, demorando o tempo que for preciso, não desistindo de mim mesma novamente. Nunca mais. E quando nos abrimos de novo à vida e aos outros, encontramos sempre pontos de luz no meio da escuridão mais densa, lanternas que nos guiam, mãos que se estendem à nossa, apertando-a sem largar, dando-nos força e alento. Mesmo sem saberem sequer da nossa existência, apenas por nos oferecerem palavras e pensamentos que bem poderiam ser nossos, caso escrevêssemos assim. Quando resolvemos olhar de novo para o quadro todo e não apenas para o quadradinho minúsculo que temos à nossa frente, apercebemo-nos que somos todos muito mais espelhos uns dos outros do que caricaturas preconceituosas, que amamos e sofremos de forma semelhante, que temos os mesmo medos e angústias e, mais do que qualquer outra coisa, todos, sem excepção, procuramos ser felizes, todos os dias. Nem todos conseguimos, é certo, mas o desejo é o mesmo. 

O meu desejo de felicidade leva-me a procurar novos caminhos e a acreditar mais nas minhas capacidades e em tudo o que ainda tenho para oferecer ao mundo. Leva-me a aceitar e abraçar a minha eterna condição de nómada e de cidadã do mundo, a necessidade de partir e descobrir novas paragens, sem nunca esquecer de onde parti, quem sou e de onde venho. Leva-me a fazer as pazes com as palavras, sobretudo com a minha escrita. Muito longe ainda de me reconhecer novamente naquilo que escrevo, mesmo sem gostar ainda da fluidez com que as palavras me saem, não quero voltar a ter medo de escrever. Sinto falta de alinhar palavras e frases, seja em que suporte for - já quase me sentia sufocar. Mas também quero continuar a dar asas à imaginação através de outras ferramentas, que me têm ensinado muito sobre mim mesma e sobre a vida, de uma forma geral: a fotografia, a culinária e o prazer de criar objectos à mão, nos mais diversos materiais. Afinal de contas, é possível contar histórias de tantas maneiras e a minha está apenas a (re)começar.

9 comentários:

Isa disse...

Força, Mar* adorei o texto.
bjo

Mar* disse...

Obrigada, mesmo.

Bjo transatlântico

Moony disse...

if you believe and dream it you can do it...

Ly*

Mar* disse...

You know I will ;)

Ly too*

Helena Araújo disse...

Parabéns pela coragem! E pelo texto, tão especial.

(e ai! anda uma pessoa a escrever o que lhe passa pela cabeça, sem sonhar das consequências que possa ter isso a 3.000 quilómetros de distância...)

Mar* disse...

Obrigada, Helena!

(Acho que é desta que te oferecem uma medalhita no 10 de Junho - andas a contribuir valentemente para a felicidade e produtividade dos teus concidadãos!)

;)

Helena Araújo disse...

Penso que já temos uma cerimónia solene de entrega apalavrada ali para o topo da torre dos Clérigos!

Mar* disse...

Ah, essa é para te entregar a Chave da Cidade, mas podemos fazer um 2 em 1!

(vamos ter que mandar alargar a Torre, é que vão vir charters carregadinhos do mundo inteiro!)

Helena Araújo disse...

vai vir charters, hehehe

Se for assim, sempre se pode deslocar o evento para o Jardim da Cordoaria.